sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

MINHAS "CRÔNICAS DE INFÂNCIA"


EU
Nasci no dia 12 de setembro de 1.951.
Sempre fui uma pequena cheia de sonhos.
Não desses sonhos infanto juvenis de hoje, de possuir um celular, um psp, um computador, um cd, uma televisão de plasma, carro do ano parado na porta de uma enorme casa com piscina e no período de férias sair a passear com a família ou com os amigos.
Não desses sonhos de ganhar dinheiro na Loteria Federal ou nos programas de Televisão como do Sílvio Santos, Gugu ou Faustão.
Não desses sonhos como os de ser sorteado com um caminhão cheio de bugigangas e etcetera e tal.
Não desses sonhos que facilitam viver e depois permanecer pelo resto da vida deitado numa rede só imaginando musas e formando sons maravilhosos para o espírito como fazia, quando vivo, nosso grande e querido Dorival Caymmi.
Nada disso!
Meus sonhos significavam ter uma família onde todos pudessem dizer sem vergonha que se amavam de verdade.
Meus sonhos falavam de desejos simples como o fato de abrir-se uma porta e encontrar tudo bem do outro lado. Ou como saber que meu pai estaria bem consigo mesmo se o seu gado não contraísse nenhuma doença ou quando a chuva em demasia não estragasse as suas plantações. Ou como senti-lo tão próximo de nós enquanto sorvia seu chimarrão jogando frases ao vento. Ou como ver sorrir as alfaces na nossa horta. Ou como dar milho às galinhas de manhã e recolher seus ovos à tardinha. Ou como presentear a nossa mãe num dia qualquer com uma mudinha de rosas só para vê-la plantar e aguardar a pega feliz. Ou como saborear biscoitos e rosquinhas que minha avó fazia com tanto gosto para aguçar a fome da gente.
Nesses sonhos não entravam angústias ou apreensões.
Eram sonhos bons.
Eram sonhos que a gente não queria que amadurecessem. 
Mas eles naturalmente amadureceram e, como eu, eles também envelheceram.
Mas é com imenso calor e a mais grata das satisfações que os recordo. Justamente quando completo 59 anos de vida.


CULPA DO MATABURRO 


Nas noites frias de inverno, meu pai costumava fazer uma pequena fogueira no meio da cozinha onde então dispunha as cadeiras em círculo e lá ficávamos nós, as cinco meninas, a ouvir histórias com os olhos brilhantes de felicidade.
Minha mãe então nos servia café com leite bem quentinho e broas de fubá que desde os sete anos de idade aprendera a fazer com Nhá Lila, minha avó.
O dia havia sido de intenso trabalho no Sítio “Bom Retiro” onde morávamos.
Meu pai contava muitas histórias.
Primeiramente, retornava à tecla permanente.
Falava do tempo em que servira o Exército como Voluntário na cidade de Ribeirão Preto, na década de 40.
Meu pai sempre dizia que, se não fosse sãomiguelense da gema, e se tivesse uma coisa chamada de “livre arbítrio”, que só bem mais tarde compreendi o que ela queria dizer, ele teria gostado de ter nascido e criado naquela cidade.
Meu pai então lembrava-se de muitos episódios, como do tempo em que fora prático de Farmácia em São Paulo, trabalhando na Rua Domingos de Moraes.
Aí, contava que morara numa pensão no Bairro da Liberdade e que nessa época a Capital possuía mais de trinta mil veículos.
A gente sabia o que era veículo, só não imaginava todos esses carros trafegando pelas ruas da cidade.
Tempo do prefeito Prestes Maia.
Foi nesse tempo que meu pai se tornou um grande torcedor do São Paulo Futebol Clube.
E era são-paulino roxo.
Estranho, porque na época só os ricos é que se diziam torcedores desse time.
Como foi?
Recebia um ordenado tão miserável nessa farmácia, que mal dava para pagar o aluguel. Ainda mais que acabou travando forte amizade com um colega de quarto, muito farrista, e que o levou a conhecer as noites paulistanas.
- “Que noites!”- suspirava ele, jogando os olhos para minha mãe...
Foi quando um colega de trabalho o aconselhou a se tornar amigo também do cobrador de um bonde que ele tomava todos os dias e que era tricolor doente, quer dizer, um tricolor quase desenganado de tão roxo.
Feito isso, meu pai passou a viajar de graça diariamente, claro, enganando o cobrador.
Só que o engano demorou pouco, pois o time do São Paulo acabou conquistando seu coração.
Meu pai tornou-se um são-paulino, de alma e coração, até o fim de seus dias.
Das histórias que nos contava, havia uma que ele sempre repetia. Essa permaneceu durante toda a nossa infância chegando até a frustrar por algum tempo nossos primeiros sonhos.
Dizia de um grande casamento para o qual fora convidado numa cidade vizinha a São Miguel Arcanjo.
Como ainda não tinha automóvel, foi para lá de cavalo. Um cavalo branco muito grande e bonito chamado Bainho.
Segundo meu pai, nesse casamento tinha de tudo.
Comidas que ele jamais conhecera, tantos paladares e cores. Bebidas que ele jamais tomara, tantos os sabores.
Sanduíches que ele jamais experimentara.
Bolos, então, de tantas formas e tamanhos.
Guloseimas? Milhares delas.
Aí ele voltava do transe em que se enlevava e dizia para a gente, só para ver a nossa reação:
- “Arranjei uma sacola bem grandona e coloquei dentro dela tudo o que o cavalo podia carregar para trazer para casa; tinha até umas lembracinhas, miniaturas de florinhas e tules bordados”.
- “E daí, pai?” - eram cinco vozes em uníssono.
- “E daí, quando eu estava chegando perto do mataburro, começou um tremendo temporal. Dei um tranco no Bainho para ele apressar o passo, mas ele acabou tropeçando bem no meio do mataburro e derrubando a sacola que escorreu pelo buraco e caiu na enxurrada que já se formava na estrada. E lá se foi aquele montão de doces e salgados que eu trazia da festa. Não pude fazer nada”.
Minha mãe olhava para nós com tanta pena pela judiação que meu pai nos fazia com toda aquela mentirada sobre o tal casamento.
Íamos dormir frustradas e magoadas. Cada qual sonhando igual.
No dia seguinte, tudo estava esquecido, porque minha mãe já se arvorava a fazer bolinho de frango, doce de goiaba com queijo, tudo para matar nossas lombrigas ouriçadas pela noite anterior.
O bolinho de frango da minha mãe?
Ela aprendeu com minha avó, mãe do meu pai, a Nhá Lila.
Dentro do bolinho, vinha um pedaço inteiro de frango.
Era uma verdadeira refeição.
Minha mãe nos dizia sempre que aprendera com nossa avó, mas ‘só de olhar’.


O POÇO PROFUNDO


O Sítio “Bom Retiro”, onde morávamos, distava pouco mais de dois quilômetros da sede de São Miguel Arcanjo.
Lá não havia luz elétrica e nem água encanada.
A água encanada, tudo bem, nem na urbe havia, pois só chegou na cidade pela década de 70.
Mas até mesmo água de poço demoramos a conhecer e a utilizar.
Lembro que o poceiro contratado por meu pai, que atendia pelo nome de Nestor, suou bastante e quase desistiu da empreitada de procurar por água potável o mais próximo possível de nossa casa. 
Arre que conseguiu!
Tinha o poço cerca de vinte e três metros.
Quer dizer que ficou apenas no sonho a vontade que tínhamos de catar água com a canequinha, como se conseguia na casa do tio José Adriano ou de outros moradores na cidade.
Já pensou catar água da terra com as próprias mãos?
Mas tudo bem. Era uma delícia de água!
Até que um dia algo desagradável aconteceu.
Minha mãe percebeu que alguns pelos estavam chegando junto com a água trazida pelo balde. Intrigada, ela jogou várias vezes o balde e ele continuou trazendo pelos que logo ela percebeu que eram de gato.
Chamou os bichanos e eles apareceram, um a um. Menos o mais novinho, o Coringuinha.
Caíra o tal gato no poço.
Coitado! E ninguém viu!
Dava até para reparar no fundo do poço o coitado em pé sobre o círculo de tijolos, miando desesperado para querer salvar-se.
O azar é que meu pai havia viajado para Capão Bonito a fim de visitar a irmã Cynira.
E agora?
Enquanto minha mãe pensava lá com seus botões o que fazer, nós, as cinco meninas chorávamos junto ao poço onde sofria o gato acidentado.
A cada mio seu, a gente soluçava. Era como se nós mesmas tivéssemos caído naquele buraco escuro e traiçoeiro.
Foi então que minha mãe teve a idéia e iniciou o salvamento. Jogou o balde até sentir que chegava ao final do poço; encostando na água, balançava a corda, incansavelmente, muitas e muitas vezes.
Quantos minutos? Quanto tempo?
Ora, para nós o tempo parara de correr. Aliás, nem existiu mais.
Até que, afinal, o balde parou de balançar sob o esforço de minha mãe que suava frio e ficou do ladinho do animal.
Como que pressentindo que lá fora, bem no alto, havia um monte de gente torcendo por ele, o gato agarrou-se à corda, entrou no balde e veio vindo, veio vindo, e minha mãe puxando o balde devagarzinho, e nós, as meninas, já exultantes de felicidade. Tudo no maior suspense e silêncio, para que ele não se assustasse e caísse de novo, e dessa vez, quem sabe, para a morte certa.
E eis que surge o bichaninho, tremendo feito um condenado à morte na forca.
Minha mãe enrolou o animal num casaco de lã e o deitou, sob os nossos cuidados, em cima do fogão de lenha.
Demorou um pouco, mas ele se aqueceu e voltou a reconhecer todas nós.
Pelas contas de minha mãe, fazia bem uns dois dias que aquele gato havia caído no poço.
Demorou alguns dias para que os pelos dele acabassem de subir junto com a água que a gente utilizava.
Um belo dia, a água se tornou límpida novamente.
Tudo voltou ao normal.
Normal, só que triste quando a noite chegava. Muitas vezes, nós ficávamos lá na estrada olhando para a cidade toda iluminada.
Saber que tão pertinho dali a vida continuava por algumas horas a mais e nós, por falta de luz elétrica, éramos obrigadas a dormir tão cedo...
Fazer o que, não é?


LADAINHA


Cinco e meia da manhã...
Todo dia a mesma ladainha. Não dava tempo nem de tirar as remelas dos olhos.
A fila indiana entrava pela cozinha, devagarzinho, espreguiçando-se ainda, e cada uma de nós, as cinco meninas, apanhava sua canequinha de alcinha feita de alumínio ou com lata de massa de tomates, dessas que o Anorim aprendeu e faz tão bem; dentro de cada canequinha, uma pequena porção de açúcar misturada com canela em pó. O cheiro era muito agradável.
Uma vez dentro da mangueira, era só estendermos os braços e deixar que aquele leite espumoso enchesse nossas canecas. Leite direto da fonte. Da fonte das vacas ordenhadas pelo meu pai, a Sapeca, a Pombinha, a Tampinha.
Eu, a mais velha, sempre ia por último, não por ser a mais velha, mas para poder salivar bastante e, afinal não devolver à boca aquilo que já deveria estar no estômago.
Nem imagino qual seria a reação do meu pai se isso acontecesse.
Leite cru, sem ferver, sempre me deu náuseas.
O que me tirava dessa concentração diária era ouvir o Vicente Leporace do noticioso ‘O Trabuco’ na Rádio Bandeirantes, que acordava a Natureza, destoando até, da singeleza do Sítio Bom Retiro.
Através da Rádio Bandeirantes é que fiquei sabendo que havia uma mulher-campeã de tênis, e era a brasileira Maria Esther Bueno vencendo em Wimbledon.
Soube que a Rússia lançava seus primeiros satélites espaciais e que os Estados Unidos, enciumados, resolveram criar a NASA e 
então começou a maior disputa de todos os tempos.
Poderia haver mais uma guerra mundial. E mal havíamos saído de uma...
Ouvi também, e gostei que Jânio Quadros, o Governador de São Paulo, havia proibido a execução de rock em bailes, alegando que era uma afronta à moral e à decência.
Tomei conhecimento que JK, o Nonô, se tornara Presidente da República e a indústria automobilística prometia bastante.
Ficou na minha cabeça que o Brasil possuía cerca de sessenta milhões de habitantes.
Foi nessa época que a “juventude transviada” adotou a Coca-Cola e os seriados campeões na televisão eram I Love Lucy, Bonanza, Bat Masterson, Rota 66, Rin-tin-tin, Lassie.
Não havia ainda o videoteipe, que só chegou ao Brasil quando eu completaria nove anos.
E a festa dos brasileiros com a conquista da Taça Jules Rimet? Claro que graças a jogadores como Nilton Santos, Didi, Garrincha e um tal de Pelé que com apenas dezessete anos já fora rotulado “Rei do Futebol”.
Ouvi, também pela Rádio Bandeirantes, que surgia o Élvis Presley, que Einstein morria, e também o James Dean com apenas vinte e quatro anos. Que a cantora Ângela Maria reinava absoluta e Juca Chaves já cantava para presidente com apenas vinte anos de idade.
Pois bem. 
Uma vez tomado o leite, era só aguardarmos pelo café da manhã preparado no fogão à lenha pela minha mãe.
Nas bocas cheias de lenhas e nos desenhos da chapa de ferro sobre o fogão, já se via o caldeirão de feijão, o leite fervendo e minha mãe mexendo aquela panela de barro preta.
Podia ser um virado de ovos ou de torresmos ou uma polenta que depois seria frita.
O que fosse que minha mãe servisse, seria delicioso e logo sumiria da mesa.
Na laranjeira, uma imensidão de pássaros multicoloridos, como não se vê mais por aqui.
Tudo era prenúncio de felicidade plena.
Bom seria se para o resto das nossas vidas!


O QUITU CHEGOU


Antigamente, rosto pálido, comichão no nariz, falta de energia, diarréia ou prisão de ventre, sono agitado, gritos noturnos, podia-se adivinhar.
Era verme!
Com certeza!
Também pudera!
Gordura de porco em demasia, doce de abóbora em demasia, goiabada em demasia, laranja verde, mexerica do chão, muita polenta... E pés descalços caminhando pelas trilhas dos animais peçonhentos ou outros que habitavam e viviam soltos pelo terreiro como as cabras, os porcos, as galinhas.
Daí, claro, chá de boldo, de carqueja, de losna, de hortelã que meu pai mandava fazer e nos obrigava a tomar.
Caso esses remédios não dessem nenhum resultado, lá vinham os supositórios.
Aí, sim, nem espírito agüentava. Limpava tudo que era intestino.
Época de sarampo, Nossa Senhora!
Calafrios, febres, manchas pelo rosto quase do tamanho de uma lentilha que depois se propagava por todo o corpo. Febre de quase quarenta graus.
Quando nós, meninas, fomos infectadas, nosso pai nos obrigou a tomar suco de limão ou de laranja misturado com caldo de umas verduras que nem me lembro mais.
Brincar? Nada! Repouso absoluto!
A caxumba, então? Um horror!
As glândulas salivares inchavam tanto que nem mesmo ingerir água a gente conseguia. Doía demais.
Às vezes, a caxumba dava nos dois lados, como a minha. Ai, ai. Inchou tanto que eu me parecia com aquelas abóboras utilizadas no Halloween.
Compressas quentes com chá de camomila até acalmavam a dor. Ou então massagem com suco de limão quente. Mas era só no momento e quando minha mãe tinha tempo, coitada.
Nós, as cinco irmãs, tivemos todas essas doenças infantis. Numa semana uma, noutra semana a outra.
Todavia, quando a catapora chegou... Virgem Maria!
“Pegou” todas nós ao mesmo tempo.
Começou assim: uma febrezinha que foi aumentando, uma erupção de manchinhas vermelhinhas que depois se transformaram em algo parecido com ampolas contendo um líquido escuro dentro delas. Algum tempo mais e elas começavam a secar e a coceira era tanta que se tornava insuportável. Mas não se podia coçar, se não a pele ficaria marcada pelo resto de nossas vidas.
E a gente quase acabou ficando louca.
Minha mãe proibia de nos olharmos no espelho. Dizia que fazia mal.
Até hoje não sei por que o espelho não era aconselhável quando se contraía catapora.
Era só tristeza. Repouso e tristeza. Tristeza e repouso.
Os dias se tornavam intermináveis.
Parecia que nós jamais conseguiríamos ver o sol novamente.
Nossa tristeza, nosso desânimo, tudo o que era ruim, pelo menos momentaneamente, terminava durante a tardezinha, quando certo automóvel estacionava em frente ao portão da nossa casa do Sítio “Bom Retiro”, e dele saltava, calmo e sorridente, solícito, falante, amável, o grande “farmacêutico-médico” de São Miguel Arcanjo, o Quitu.
Quitu era a medida certa, o termômetro da nossa saúde.
E era tão bom seu astral que a gente se animava a esperar com toda a paciência do mundo, mais um dia ou dois na convalescença da doença.
Puxa vida!
Depois do Quitu, “farmacêutico-médico” nunca mais tivemos em São Miguel Arcanjo.
Deus o tem!


O ARCO DA VELHA


Uma das mais belas e mais terríveis lembranças que guardo de minha infância tem a ver com um fato que presenciei há mais de meio século, ao lado de minha mãe.
Por esse motivo, cheguei à conclusão que, se Deus existe, não pode representar-se de outra forma se não como o Universo em trezentos e sessenta graus.
Havia chovido muito durante a noite e algumas cabeças de gado dispersaram invernada adentro.
O frio era de inverno. Quando isso acontecia, meu pai era atacado pela “gota” que o acompanhou por toda sua vida.
Nesse dia, não podendo locomover-se, incumbiu-nos, a minha mãe e eu, de buscarmos as tais reses perdidas para serem ordenhadas.
Lá fomos nós, não percebendo nada a menos de meio metro dos olhos. Tudo esbranquiçado pela neblina que cobria tudo. Cheiro de erva e de pasto molhado. E nada das vaquinhas.
Meia hora ou mais depois é que começamos a divisar a Menina, a Sapeca, a Bolinha, um pouco mais longe a Tampinha e a Briosa, a Manquinha. E a Belinha, já comendo capim.
Cada uma de nós, portando uma taquara, tocando de leve nas desgarradas, nos dispusemos a caminhar de volta para casa.
No entanto, estacamos como duas bestas empacadas. É que no céu havia o desenho de um arco-íris tão imenso quanto o espaço que ali existia. Bem sobre nossas cabeças.
O medo paralisou-nos.
Todas as histórias que ouvimos acerca daquele fenômeno da Natureza pareciam reais, verdadeiras.
Seríamos, com certeza, tragadas pela força daquele monstro celeste. E depois lançadas decerto para algum lugar obscuro e desconhecido.
Para onde seríamos lançadas?
Pedir socorro a quem naquele deserto plano e totalmente fora de órbita?
O horror era tanto que, ao invés de impelir-nos a fugir dali, nos obrigava a olhar para aquele arco infinito, intensamente colorido e beber da sua beleza como se fora a derradeira gota de vida para o nosso último suspiro.
Minha mãe e eu começamos a rezar.
Tantas Aves - Marias quanto agüentávamos.
Tantos Pais - Nossos e Salve - Rainhas quanto as nossas salivas ainda existissem na boca.
Finalmente, cansadas de rezar, hipnotizadas e trêmulas, ambas nos abraçamos e decidimos, pelo alto das horas, “atravessar” aquele absurdo painel, sem olhar de lado, nem para o alto, só para baixo, somente para o chão. Mas por mais que caminhássemos, parecia que não saíamos do lugar.
A energia daquele instante estava no nosso corpo, impregnavam todos os nossos sentidos.
Fechamos os olhos e, deixando tudo por conta de Deus, fomos caminhando, tocando as reses, vagarosamente, num mudo apelo de compaixão.
Quando nos libertamos daquela inquietante sensação, e chegamos até à mangueira, meu pai estava furioso, pois começara a ordenha das outras vacas há horas. Ainda bem que o peão que morava na cidade nesse dia chegou mais cedo.
De nada adiantou tentarmos argumentar sobre o real motivo da demora; meu pai jamais compreenderia. Nem ninguém mais.
Muitas vezes, minha mãe e eu tentamos transmitir essa experiência do jeitinho que a conhecemos, porém, jamais conseguimos durante toda nossa vida.
O que ficou de bom?
Foi um das poucas ocasiões, se não a única vez em que me abracei completamente a minha mãe. Foi tão bom!
O que hoje eu não daria para passarmos de novo por aquela experiência, minha mãe!
Saudade da sua quietude!


DE FOLHAS E DE LARANJEIRAS


O Sítio “Bom Retiro” possuía um terreiro, entre a casa principal e a mangueira, bastante amplo e permanentemente limpo.
Plantado ali, de longa data, havia também uma bela e frondosa figueira, não daquela de cujos frutos se faz um gostoso doce e que possui folhas bem parecidas com as da parreira, mas de uma outra espécie de figos bem pequenos, com casca marrom. Eram frutos moles e doces, que a gente cortava em penca junto com o galho e saboreava à vontade. Nunca mais vi dessa espécie.
Havia também umas velhas mexeriqueiras, uns pés de araticuns, as goiabeiras e muitos pés de laranjas. Laranjas caipiras, comuns, laranjas do tipo brancas e laranjas secas.
Destas últimas, um único pé.
Era uma árvore mística, porque sagrada, com frutos de tamanho menor do que os normais, bastante doces e muito diferentes.
A casca era avermelhada e tão fina que dava até para retirá-la com as unhas, tal como se descasca uma mexerica.
Mas onde já se viu comer laranja como se come mexerica, aos gomos?
E onde já se viu laranja seca, sem suco nenhum?
Pois essa laranjeira em nosso sítio era como a árvore do pecado no Jardim do Éden.
Mexer nela? Nem pensar! Era o xodó do meu pai!
Parecia que até os passarinhos tinham medo de bicar seus frutos e ficar sem bicos ou com os bicos tortos.
Bater nela com uma taquara com força capaz de trazer seus frutos ao chão?
Ai! Ai! Meu pai perceberia. Só se a gente conseguisse a façanha e depois catasse todas as folhas que porventura caíssem da árvore e as enterrasse nalgum buraco de tatu.
Quando acontecia isso de “assassinarmos” uma árvore qualquer, podia ser mesmo um arbusto, era surra na certa, pois meu pai era caprichoso nessa coisa de Ecologia, mesmo antes de ela ter sido inventada ou ter virado moda, como hoje.
Já imaginou se isso acontecesse com relação àquela laranjeira? Nem pensar!
Meu pai sabia até a quantidade de frutas no pé daquela árvore. É que não nasciam muitas, não. E por isso é que era diferente essa tal “árvore do Paraíso” do meu pai.
Dessa laranja, só comíamos quando ele nos dava. 
Hoje, que educação se dá para a meninada?
Não se ensina nem ao menos plantar, que dirá cuidar como fazia meu pai.
É verdade.
Ninguém planta uma laranjeira, um pessegueiro, uma amoreira, muito menos um pé de couve, ou faz uma pequena horta.
As crianças vivem macetando as poucas árvores frutíferas que existem nos caminhos e nos quintais dos vizinhos.
As mais atacadas por elas são as coitadas das goiabeiras, cujas sementes, na maioria das vezes, nem são plantadas por mãos humanas e, sim, derrubadas por alguma ave-mãe a caminho do seu ninho, onde os filhotes a aguardam impacientemente com as bocas escancaradas à espera de alimentos.
Meninada sem futuro!


LINDAS FOLHAGENS COLORIDAS


Em nossa casa, no Sítio “Bom Retiro”, havia uma imensa área onde meu pai descansava ao fim do dia sorvendo chimarrão com vagar, em conversa com algum visitante amigo sobre política, o assunto preferido, ou até mesmo sobre fatos corriqueiros de época.
Ali, minha mãe colocava muitos vasos onde plantava as folhagens que ela adorava.
Umas de folhas verdes com pintas vermelhas. Outras de folhas brancas com manchas verdes. Pintas amarelas num fundo mais escuro em outras. Ou pintas verdes nas folhas vermelhas.
Impossível quantificar ou mesmo classificar as folhagens de minha mãe.
Cada uma com mais exuberância do que as outras. Umas de folhas menores, outras gigantescas.
Eram formas e cores que nunca mais pudemos apreciar na vida, pois todas elas desapareceram.
E as mãos de minha mãe! Tudo o que ela plantava nascia viçoso e feliz. Como se em cada vaso onde plantasse batatas ou sementes, enterrasse sua própria vida. Que não foi um mar de rosas.
Casara-se com um dos moços mais desejados da época. Um moço que tinha lá seus defeitos, como todo mundo. Um moço que lhe deu cinco meninas, embora ele desejasse, ardentemente, que os primeiros que viessem fossem homens.
Machão como todo brasileiro!
Ah, mas como era gostoso ver minha mãe a cada folhagem que plantava ou removia, a cada nova folha que conhecia! Parecia que o seu sofrimento evaporava.
Esse era o seu maior prazer, depois do cuidado com as meninas, claro.


MARCAS DE MULHER


As marcas na cadeira de balanço antiga são as únicas lembranças que ficaram de minha avó. Pelo menos as lembranças mais reais e as mais palpáveis.
A mola, jamais consertada, era o tamanho do peso dela.
Cada vez que a via na sala de estar na cidade, na casa da Rua Governador de Toledo, 500, onde minha avó morava, e, depois na casa de meu pai, que a teve como herança, sempre sentia viva a sua presença. Era como se ela ainda estivesse ali cada vez que o relógio de parede marcava entre quatro e seis horas da tarde. Às vezes, ouvi até mesmo o rangido, como se ela viesse sentar-se, de mansinho, para rezar seu terço durante horas seguidas, com olhos e ouvidos totalmente fechados para este mundo.
Eram muitos terços!
Por quem seriam as preces de minha avó?
Creio que ela rezava pelo seu tempo e pelo nosso tempo e pelo tempo do tempo dos outros.
A cadeira tinha queimaduras nas bordas: do cigarrinho de estramônio que ela tragava para tentar curar a bronquite que, mais tarde, virou asma.
Desde que soube que essa erva era um santo remédio contra a asma, minha avó jamais deixou de cultivá-la no seu quintal.
Mas não adiantava muito. Lembro-me bem das crises por que ela passava quando sofria desses ataques e o ar lhe faltava.
O que a salvava, realmente, era o uso de uma bombinha. Aliás, não podia viver sem ela.
Mulher esperta, minha avó Nhá Lila. Esperta e forte. Tão forte que me despertava até medo. Medo e respeito.
Bastava um olhar e ela me diminuía. E eu ficava pequena, tola, abestalhada. “Quando você pensa que está indo, eu já estou voltando”, dizia sempre.
E o pior é que era verdade.
Fora casada com um intelectual. Intelectual é um ser humano bem diferente dos outros. Às vezes, até parece que não quer nada com a vida; quer mesmo é ler, matutar, pensar, escrever; é um socialista, um político, não sabe nem ser uma pessoa comum, não se alimenta direito, muito menos dorme sem antes planejar algum projeto, acredita que as pessoas mais próximas nasceram para escorar e apoiar suas idéias, não gosta de regras e, sim, de fazer regras, não se sacrifica por nada além do seu puro idealismo e outras coisas mais íntimas.
Então, minha avó teve uma vida por demais sacrificada. Mas era de uma fortaleza!
Vendeu muito jornal, muita garrafa. Fritou muito pastel, muito bolinho. Mexeu muitos tachos de doces. Fez muito “pão de sogra”. Era cozinheira de mão cheia. Tudo fez para criar os filhos.
Doze!
Ah! Se todos fossem intelectuais como o pai! Deus do céu!
Pobres coitadas das mulheres que os desejassem para maridos. Seriam como ela, sem tempo e nem muito prazer para as coisas da vida.
Mas a luta de minha avó valeu.
As filhas, todas elas, casaram-se com pessoas bem situadas na vida. Foram viver e criar seus filhos longe de São Miguel: umas delas em Capão Bonito, outra em Itapetininga e em São Paulo. Duas delas permaneceram em São Miguel: a Maria Aparecida, que faleceu com mais de noventa anos de idade e Marina Branca, que se casou com Nestor França. 
Os filhos homens, ao todo quatro, não foram intelectuais.
Um deles, comerciante e curador, o tio Moacir, chamado Pio. 
Outro, também comerciante, o Tio José Adriano, que tratava da família de forma invejável antes de apresentar problemas mentais.
Fora o meu pai, só que em dose bem menor, o tio Aristeu, que foi funcionário exemplar da Caixa Econômica Estadual e presidente da Câmara de Vereadores na década de 70. Sempre me recordo dele lendo seus jornais.


DESSA VEZ, APANHEI


Eu devia ter uns nove anos.
Morava com minha avó na Rua Governador Pedro de Toledo, 500. Naquele dia, antes do almoço, quando ninguém me viu, fui para a rua, decidida a fazer uma peraltice.
Não que eu tivesse esse costume, mas achei que a primeira coisa que aparecesse eu faria naquele sábado.
É que eu não gostava do sábado.
Era no sábado que meu pai me buscava na casa de minha avó para levar de volta ao sítio.
Dizia assim: - “Onde já se viu filha viver longe da mãe e das irmãs a semana inteira?”.
Pois bem.
Achei que ele não viria nesse dia, pois já passava das dez horas. O máximo em que ele aparecia era lá pelas oito da manhã.
Minha avó principiando a fazer o almoço, com os cabelos para o alto num coque, as mangas da blusa já arregaçadas, as panelas brilhando de tanto que ela as areava, a Escolástica ajudando... Como era bonitinha a Escolástica!
Bonitinha e cheirosinha, a mãe da Tereza e do João Caetano.
Foi quando vi aquele caminhão.
Passava tão devagarinho, tão convidativo, que decidi: iria pegar uma carona na rabeira nele.
Carona para lugar nenhum!
Não imaginei que alguém pudesse ver-me pendurada ali.
Quem sabe, no mínimo, iria até a esquina ou no máximo desceria na curva da Rua 7 de Setembro, hoje, Cônego Francisco Ribeiro em demanda à Praça da Matriz.
Só Deus sabe o que eu faria.
Agarrada ao ferro da traseira do caminhão, o pensamento era só um: esconder meu rosto com as mangas compridas da blusa azul. Assim, ninguém me reconheceria...
Foi quando, num relance, cruzei com meu pai na escadaria do casarão dos Válio, que não existe mais, e onde hoje se vê aquele prédio horroroso da Caixa Econômica do Estado de São Paulo. Nessa época, quem morava nele era meu tio Aristeu, pai do Júnior, do músico Chico Válio, da Irani, da Zezé, da Ceci, avô do Franco Carlos.
E meu pai, que eu nem sabia que já havia chegado, acabou me vendo também, ele que confabulava com meu tio.
Disse adeus à rabeira do caminhão e pus-me a correr de volta a casa de minha avó.
Coração na boca.
Só via meu pai vindo atrás de mim, como um louco, já tirando a cinta pela rua.
Meu coração em disparada.
Confiei em minha avó que jamais deixou que alguém esbarrasse um dedo sequer em mim.
Passei por ela, correndo pela cozinha e enveredei-me pelo quintal onde havia um vasto milharal.
Eu pensava:
_ “Meu pai não vai se habilitar a entrar neste milharal”.
- “Ah, minha avó não ia deixar que ele me batesse...”
Fiquei quietinha, dali só ouvindo os gritos de meu pai que me buscava:
- “Luizinha! Luizinha! Venha cá! Não adianta se esconder!”
Ouvi a voz da minha avó:
- “O que está acontecendo, Gijo? Que escândalo é esse?”
- “Cadê a Luizinha?”
- “Mas o que é que houve? Por que é que você quer a menina?”
- “Cadê ela, mãe?”
- “Mas o que foi que ela andou fazendo? Você não vai bater nela, você sabe que eu não vou deixar”.
- “Sabe o que foi que ela fez? Onde já se viu isso, mãe?! Tava na rabeira de um caminhão!”.
Minha avó ficou horrorizada:
- “Ah, foi isso, é? Coisa de moleque!! Pois então, pode bater!”
Meu mundo caiu.
Bem...
O quintal era grande e o milharal encobria tudo. Mas ele era murado. Tinha limite. Não havia como fugir.
Fiquei ali à espera do castigo.
De cinta dobrada.
Que me deixou por mais de uma semana com as marcas dela nas coxas. E febre de dois dias.
O bom de tudo isso foi que durante um bom tempo minha avó não deixou que ele me levasse para o sítio.
Nunca mesmo que eu gostei de mato!
Mas jamais odiei meu pai por isso.
Porque os pais da gente, cada um deles, tem a sua forma de amar.


TATA


Chamava-se Escolástica. O apelido era Tata.
Fora criada com meu avô, o Major Luiz Válio. Depois de casada, trabalhou por um bom período no sítio dele onde se lidava com lavouras.
Foi com minha avó que ela aprendeu tudo o que sabia na vida. Desde fazer de comidas até costurar, limpar, passar.
Escolástica era muito asseada!
Gostava de vestir-se com apuro, sempre portando uma bolsa. Geralmente era na cor preta. De couro brilhante. Um mimo!
Pertenceu a uma das poucas famílias negras que eu conheci em São Miguel.
A outra família era a dos Souza cujo integrante de nome Benedito Antonio de Souza, tornou-se o primeiro e único prefeito negro na história da minha cidade.
Escolástica era mãe do João Caetano, grande pedreiro, mas que também gostava por demais de uma pinga.
Moraram durante muito tempo no Bairro do Moínho onde as festas fandangueiras sempre estiveram sob a responsabilidade dessa família, principalmente aquelas dedicadas a São Benedito.
Um dia aconteceu.
Eu tinha lá meus 7 anos. Minha avó estando um pouco atarefada porque receberia as filhas de Capão Bonito para almoçarem em casa, pediu à Escolástica que me acompanhasse, depois da missa, na fila da rosca do Divino.
Nessa época as pessoas diziam que as roscas eram milagrosas.
Uma fila imensa! Começava na Praça.
Porém, pior do que a fila, o sol. De arrepiar.
Foi quando Escolástica, a fim de proteger-me dos raios solares, lembrou-se de pousar seu braço sobre a minha cabeça. E tanto que ela me apertava e tanto que ela me escondia que eu fiquei ali, imprensada por ela, quietinha. Só andando quando a fila andava.
Ao terminar tudo aquilo, cheguei à casa de minha avó com o pescoço todo duro. Não podia mexer para lado nenhum. E assim fiquei até que o Quitu foi chamado e medicou-me.
Escolástica não fez por maldade.
Imagine!


NATAIS


Natal só era Natal quando passávamos na casa de minha avó. Religiosamente, no nosso sapatinho havia balas e doces, caixa de lápis de cor, tercinho colorido, mini bonecas com vestidinho. Mas só podíamos ver depois da missa do galo, depois da meia noite.
No dia seguinte, era comer panetones que ela e minha mãe faziam, bolos recheados, macarronada, salada, leitoa assada na padaria do japonês.
Às vezes alguns tios passavam o Natal com a gente.
Num desses natais foi que ganhei de meus padrinhos Orlando e Terezinha Venturelli, de Capão Bonito, um anel de ouro.
Durou pouco. Não dava para fazer nada com ele no dedo. Tinha o formato de uma esfera e era oco por dentro. Amorgou todo.
Num outro Natal, ganhei de outros padrinhos, Marina e Nestor França, uma boneca.
Era grande, bonita, vinha com vestido, tinha até covinhas e os dedos pareciam de uma criança. Uma perfeição de boneca. Não a largava para nada.
Uma bela noite acabei esquecendo a coitada no terreiro. Uma chuva, de madrugada, destruiu a boneca. Era de papelão. Chorei deveras.
Quando minha avó faleceu, nossos Natais se tornaram muito tristes.
Uma que meu pai não era lá muito dessas coisas de tradições religiosas e, depois, com o tempo, minha mãe também acabou perdendo a graça.
Como eu era a mais velha, achava que deveria fazer alguma coisa. Encontrava então um galho bem bonito e grande, retirava todas as folhas e enfeitava com laranjas das mais miúdas, pendurando-as com barbante ou linha forte.
Desenhava, pintava e recortava folhas para a árvore em papel de caderno. Escrevia alguns bilhetes sensíveis com lápis de cor bem forte e pendia também na nova árvore.
Presentes?
A gente fazia brinquedos com sabugo, palha de milho, carretel de linha vazio, colher de pau velha, lata de massa de tomates e lata de óleo vazias, batata, taquara...
Surgiam carrinhos, bonecas, enfeites para a casa.
Ficavam bonitinhos!
Minha mãe gostava muito.
Pelo menos, enquanto entretidas com os afazeres, nós, as cinco meninas, não brigávamos e nem fazíamos tanto barulho.


COSTUREIRA


Um belo dia, chegou no Sítio “Bom Retiro” uma camionete com um grande caixote. Logo que estacionou em frente ao grande gramado, junto chegou meu pai no seu calhambeque. 
Mais do que curiosas, ficamos a espreitar aquele caixote.
Seria um presente?
Seriam roupas? Seriam sapatos? Seriam brinquedos?
Para quem?
Nada disso!
Claro que era um presente, sim, mas para minha mãe. Uma máquina de costura com pedal e tudo. “Long Life”.
Foi com essa máquina que minha mãe se tornou costureira.
Era um minuto só e ela fazia uma fronha. Em dois minutos, ela prendia um zíper. Um vestido, ela aprontava em meia hora.
Depois que deu esse presente para minha mãe, meu pai passou a comprar tecidos na “Casas Pernambucanas”, loja de Itapetininga.
Um dos vestidos que mais gostei foi um que minha mãe confeccionou num tecido verde água com bolinhas brancas e preguinhas partindo logo abaixo do joelho. 
Minha mãe gostava de fazer meus vestidos. Era só costurar e experimentar e... Pronto!
Jamais exigi nada. Do jeito que ela fazia, não estando apertado, nele eu entrava feliz.


ESCOLA


Íamos para a Escola de charrete. Na mesma charrete que meu pai carregava o leite para ser vendido na cidade. Eram pouco mais de dois quilômetros.
Lembro que minha primeira professora foi dona Graziela; era de Itapetininga.
No final do ano, passei em primeiro lugar, dividindo esse prêmio com a colega Maria Adélia. Fomos agraciadas com um livrinho de missa banhado a ouro e um tercinho.
Prova de que naquela época, a religião Católica tinha peso. Tudo o que se fazia na Escola, a Igreja apoiava e acompanhava.
Quando meu pai soube disso, não acreditou. Como não acreditou quando passei entre os primeiros também na segunda, na terceira e na quarta séries.
Quando passei para o Ginásio depois de ter feito o Preparatório, a minha avó me deu um relógio de ouro. Veio numa bela caixa azul com bordados dourados. Era muito chique. A pulseira era elástica.
Nunca fui muito aplicada na Escola, mas gostava de cantar e de ler poesias.
A matéria que eu mais gostava era Português: formação de frases, dissertação, redação, narrativas, ditados...
Ciências nunca foi meu forte.
Detestava ter que fazer experiências em classe.
Matemática, só na resolução de problemas.

HAVAIANAS


De pequenas, andávamos descalças.
Para a escola, meu pai encomendava chagrim, um tipo de sapato feito pelo Domingos dos Santos Terra, pai do Miguel.
Um dia, nós ouvimos uma conversa entre ele e minha mãe. Dizia que iria para Itapetininga a fim de comprar umas havaianas para nós. Para acabar com nossos vermes.
Só soubemos o que era aquilo, quando ele chegou de lá, com cinco sacolas.
Eram as sandálias. Todas da mesma cor, para não haver brigas.
Graças a Deus!
Assim nossos pés não cresceriam demais da conta, pois os mais velhos diziam que aqueles que andavam descalço, o pé só vai crescendo, crescendo...


COISA DE MULHER


A primeira menstruação aconteceu quando eu tinha apenas nove anos de idade.
Era um dia de sol.
Peguei a bicicleta Monark do meu pai e me dispus a passear pela estrada. Essa estrada nos ligava até a cidade e também ao Bairro do Turvinho. Ficava bem em frente da nossa casa.
Por ela, o conhecido Fausto Ribas, esposo de Adelina Prandini Ribas (a primeira mulher empreendedora que São Miguel Arcanjo conheceu), então administrador da famosa “Fazenda Atlântida” que pertencia à família do Comendador Dante Carraro, muitas vezes, passando como um jato, fazia histórias: atropelou inúmeros animais do Sítio “Bom Retiro”.
Desde galinhas e pintinhos, até porcos e bezerros. E não tinha conversa com ele. Atropelava e nem parava para ver o que havia atrapalhado o seu caminho.
Fausto era um homem bravo e mal educado.
Tanto que em 1.963, meu pai, que também era bravo e de pouca conveniência, fez um requerimento à Câmara de Vereadores para que a estrada mudasse de lugar. E mudou.
Bem: naquele dia, a turma contratada pelo meu pai já preparava a limpeza do terreiro para espalhar o feijão a ser malhado. Eram varas de bambu sendo alisadas. Eram correntes sendo preparadas.
E eu na estrada, já decidida a voltar para casa. Foi quando percebi uma coisa estranha e apeei da bicicleta. Uma mancha de sangue tingira o selim.
Com medo, saí da bicicleta e comecei a empurrá-la para voltar. Minha mãe, me vendo, logo percebeu aquilo.
- “Mãe, eu me machuquei no cano da bicicleta”.
Mas minha mãe já sabia. Chegou-se a mim, tirou a bicicleta das minhas mãos e me levou para dentro, dizendo:
- “Luizinha, chegou a hora de você parar com essas brincadeiras de moleque”.
Eu me transformava em mulher.
Que tristeza!!


Livro editado em 2.010- Editora Trombetti.

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